Beautiful people
Um homem encontra-se na memória da sua visão, enquanto as estrelas abandonam lentamente o palco. Uma mulher aproxima-se da boca de cena e diz convictamente: “eu quero ser uma bailarina famosa e reconhecida internacionalmente”.
A declaração do desejo é um direito que habitualmente reconhecemos uns aos outros. A proposta de Rui Horta para o grupo Dançando com a Diferença devolve-nos esse desejo e leva-nos a reflectir até que ponto estamos preparados para aceitar os desejos dos outros corpos. Na verdade, talvez estejamos dispostos a reconhecê-los mais nuns corpos do que noutros. Não se trata pois simplesmente de aceitar a diferença, mas antes a de lidar e conviver com as vontades que nos chegam do lado de lá do espelho.
O que vemos do outro lado do espelho?
O que vê cada espectador do lado de lá do palco?
Beautiful people não esconde a deficiência, nem a embrulha em sentimentos de piedade. De certo modo, aquilo que o coreógrafo faz é tornar mais visível a brutalidade e a injustiça com que a sociedade trata a pessoa com deficiência. Fá-lo a partir das pequenas histórias de vida, algumas delas ficcionadas e outras simples episódios performativos. Alguns gestos parecerão chocantes, como o corpo que é cruelmente lançado fora da cadeira de rodas, outros ridiculamente competitivos, como a disputa pelo microfone, outros ainda na fronteira do conflito, como o combate ao ralenti. Um megafone esquecido no centro do palco sinalizará a cantilena do pedinte, do excluído, mas também o grito de revolta tantas vezes adiado. Um corpo embrulhado em luzinhas de natal porá a nu as pequenas e falsas caridades que admitimos e promovemos em datas precisas. Outro corpo embrulhado em fita-cola revelará a rugosidade das coisas que não seguem como desejaríamos.
Quando os intérpretes se aproximam da boca de cena, com minhocas na cabeça, o espectador sentirá talvez a incomodidade do olhar, uma espécie de nó dissonante no centro do seu próprio cérebro. Mas será sobretudo no coração que encontrará a fórmula para desatar esse nó. Descobrirá então o sentido desta peça construída com fragmentos, desta peça simultaneamente perturbadora e sensível. No final, tal como os intérpretes, ficará talvez com um emaranhado de estrelas entre as mãos... E dirá: eis beautiful people.
(Daniel Tércio)
Ficha Artística
Concepção, textos e coreografia: Rui Horta
Direção artística: Henrique Amoedo
Intérpretes: António José Freitas, Bárbara Matos, Elsa Freitas, José Manuel Figueira, Juliana Andrade, Ricardo Mendes, Sofia Marote e Sónia Gouveia
Ensaiador: Vanessa Amaral
Ensaio de voz (apoio): Lidiane Duailibi
Notação coreográfica: Luísa Aguiar
Assistentes de palco: Fátima Trindade e Telmo Ferreira
Operação de som: Luísa Aguiar e Rui Branco
Banda sonora: Tiago Cerqueira; Nick Cave; John Zorn / Ennio Morricone; Eurythmics (arranjo de Tiago Cerqueira)
Figurinos e desenho de luz: Rui Horta
Costureira: Fátima Trindade
Operação de luz: Maurício Freitas
Agradecimentos: Ana Paula Vieito, Dolores Aguiar, Maria José Freitas, Miguel Vieira, Pedro Rodrigues, Rolando Vasconcelos, Sara Anjo, Victor Feitas e Volodimir Bobuskyy
Produção: AAAIDD - Associação dos Amigos da Arte Inclusiva - Dançando com a Diferença
Duração: 45 minutos
Indicado: + 6 anos
Estreia absoluta: 14/06/2008 Centro das Artes Casa das mudas Calheta – Madeira (Portugal)